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Juristas afirmam que banalizar apreensão de celulares, como no caso de Bolsonaro, é prática abusiva

Rebelo concorda que a apreensão do celular de Bolsonaro no caso do cartão de vacinação fere o princípio da proporcionalidade, já que o celular “não parece um elemento essencial à investigação”.

    A apreensão de celulares está se tornando corriqueira em inquéritos conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 3, um dos alvos dessa medida foi o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), no caso do cartão de vacinação, incluído no âmbito do inquérito das milícias digitais.

A Polícia Federal (PF) fez buscas em sua casa e apreendeu o seu dispositivo pessoal, assim como os de todos os outros alvos da mesma operação. Para juristas consultados pela Gazeta do Povo, a prática está sendo usada de forma abusiva e contrária ao princípio da proporcionalidade, segundo o qual uma liberdade só pode ser restringida pelo Estado na estrita medida em que essa restrição for necessária para proteger um direito considerado mais importante. As informações são da Gazeta do Povo.

Os juristas também afirmam que a fragilidade das justificativas para a apreensão dos dispositivos levanta suspeitas de fishing expedition ou “pesca probatória” – isto é, a tentativa de pescar algo de irregular contra uma pessoa lançando uma ampla rede de medidas invasivas sobre sua vida privada. A pesca probatória é uma prática ilegal em investigações, e é um dos motivos mais frequentemente alegados por alguns juristas para condenar a operação Lava Jato.

A apreensão dos celulares de Bolsonaro e outros investigados foi solicitada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no dia 21 de abril, e autorizada por Alexandre de Moraes, ministro do STF e relator do inquérito das milícias digitais, em 29 de abril. Na segunda-feira (8), o Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal (PF) começou a fazer a perícia dos aparelhos apreendidos.

Em entrevista à Jovem Pan, Bolsonaro disse que recebeu agentes da PF e, ao entregar seu celular, avisou que o aparelho podia ser desbloqueado sem senha porque ele não tinha “nada a esconder sobre nada”. Não há, no pedido da PGR, uma descrição objetiva do que se pretende investigar em concreto com a posse do dispositivo do ex-presidente.

Juristas veem ação desproporcional e indícios de “pesca probatória” em caso de Bolsonaro

O jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), explica que é fundamental a existência de “indício objetivo da prática de condutas específicas que se possa provar com o aparelho”. “De fato, temos visto uma banalização desse recurso, pois aparentemente virou uma espécie de ‘pesca probatória’, em que se apreende o celular sem saber ao certo se há algo ali a ser investigado, na expectativa de que apareça. Isso não só representa a banalização do recurso, como é ilegal”, comenta.

Segundo o advogado criminalista João Rezende, “é preciso uma proporção para reduzir os danos”, e deve-se evitar “aplicar medidas muito gravosas quando se podem adotar outras diligências”. “Se foi outra pessoa quem inseriu os dados falsos no sistema [do cartão de vacinação], o celular dessa pessoa já bastaria para saber se ele recebeu essa ordem do Bolsonaro ou de qualquer outra pessoa. Faz muito mais sentido apreender os bens da pessoa que cometeu o ato em tese, e que teria recebido uma ordem de alguém, do que aprender todos os celulares de todas as pessoas que poderiam ter dado essa ordem para ele”, explica.

Para Rezende, há características de pesca probatória na medida, o que é especialmente grave no caso de Bolsonaro. “Quando se trata do celular de um ex-presidente da República, há questões muito sensíveis envolvidas, que podem até gerar instabilidade política no país. Apreender o celular de um ex-presidente sem motivação proporcional mostra falta de responsabilidade”, diz.

Rebelo concorda que a apreensão do celular de Bolsonaro no caso do cartão de vacinação fere o princípio da proporcionalidade, já que o celular “não parece um elemento essencial à investigação”.

Conrado Gontijo, doutor em Direito Penal pela USP, diz que a apreensão de um celular é autorizada pela legislação brasileira “quando se verifiquem elementos concretos de que o usuário do aparelho está envolvido na prática de delitos e de que, no aparelho, podem ser encontrados elementos úteis à investigação”. Ela seria ilegal no caso de pesca probatória, quando “a realização da diligência de investigação ocorre antes mesmo da existência de elementos concretos de que um crime tenha sido praticado”. “Quando há essa inversão, a apreensão é ilegal e o material a partir dela obtido deve ser descartado”, explica.

Casos de apreensão de celular nos inquéritos do STF se multiplicam

A investigação sobre os cartões vacinação é só mais um dos diversos casos nos quais as apreensões de celulares têm sido usadas em inquéritos do Supremo. No começo do ano, por exemplo, centenas de presos pelos atos do dia 8 de janeiro também tiveram seus celulares apreendidos.

Nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, vários dos investigados já tiveram seus aparelhos coletados pela polícia, como a ativista Sara Winter, os jornalistas Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos e o ex-deputado federal Roberto Jefferson.

Em 2022, a PF apreendeu o celular de empresários que conversavam entre amigos em um grupo de WhatsApp e se tornaram investigados por suposta organização para um golpe de estado. Luciano Hang, dono da Havan, foi um dos que tiveram que entregar seu dispositivo à polícia, embora nunca tenha falado em golpe.

O empresário Afrânio Barreira, dono da rede de restaurantes Coco Bambu, teve dois celulares seus apreendidos. A justificativa para torná-lo alvo da investigação e coletar seu celular foi esdrúxula: baseou-se em um emoji que sugeria apoio ao que estava sendo dito no grupo. Segundo o texto da decisão Moraes, Barreira “anuiu com as ideias propaladas (…) postando uma figurinha de um rapaz aplaudindo”, o que justificaria a ação policial que resultou na apreensão dos dispositivos.

“Falta a proporcionalidade necessária a medidas cautelares gravosas, como é o caso da busca e apreensão. São necessários mais elementos para poder adotar esse tipo de diligência. Nesse caso [dos empresários], daria, por exemplo, para tomar depoimento de alguém sobre essa mensagem, ou juntar as capturas de tela a que o Judiciário já teve acesso e analisar as mensagens que foram enviadas. Mas apreender o celular da pessoa a partir do emoji que concordava com alguma mensagem? Era um contexto entre amigos, nada ameaçador, sem tom concreto de ameaça ou de ofensa aos direitos e garantias fundamentais”, comenta Rezende.

Para ele, o grau invasivo da medida de apreender um celular pode se aproximar, em alguns casos, da tortura psicológica. “O celular tem a vida da pessoa inteira. Uma medida tão gravosa assim precisa de proporcionalidade. E é o que está faltando. Realmente está ocorrendo uma banalização.”

Julgamento no STF pode facilitar apreensão de celulares

A apreensão de celulares tornou-se tão corriqueira que constitui, atualmente, um tema de julgamento no STF. No tema 977, que tramita na Corte, os ministros vão avaliar a licitude da obtenção de provas a partir de celulares apreendidos sem a necessidade de autorização judicial.

Em fevereiro, a PGR remeteu ao Supremo um memorial defendendo a legalidade da obtenção dessas provas sem autorização da Justiça, e justificou esse posicionamento comparando um smartphone a “um conjunto de bilhetes”.

“Dispensa-se ordem judicial tanto para que a autoridade policial possa analisar uma agenda com uma lista de telefones ou um conjunto de bilhetes em papel trocados pelos envolvidos e coletados no local do crime, quanto para periciar dados contidos na memória de um smartphone apreendido no curso da investigação”, argumentou o procurador-geral Augusto Aras.

Para Conrado Gontijo, “é essencial” que o Supremo limite o acesso a aparelhos telefônicos a casos em que houver ordem judicial. “O conteúdo dos aparelhos está protegido por sigilo constitucional, por isso, seu acesso obrigatoriamente deve ser precedido de autorização judicial. Essa exigência não representa obstáculo indevido a qualquer investigação, mas efetiva ferramenta de proteção de direitos fundamentais”, diz.

João Rezende considera que uma decisão do Supremo dispensando a necessidade de ordem judicial poderia banalizar ainda mais a apreensão de celulares. Já houve casos, relata ele, em que policiais autorizaram investigados a fazer uma chamada com o único objetivo de remover o aparelho desbloqueado de suas mãos. “Se houver decisão nesse sentido de dar abertura maior para esse tipo de prática, isso também daria muito mais espaço a todo o contexto de fishing expedition e a perseguições políticas”, afirma.

Gazeta do Povo.

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